17.6.03

Grandes são os desertos, e tudo � deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfar�am o solo, o tal solo que � tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se v� tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em v�speras de viagem,
Com a mala aberta esperando a arruma�ão adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (� parte o incómodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo � deserto.
Grande � a vida, e não vale a pena haver vida,

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arruma�ão das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates � crian�a a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã � infinito.

Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por for�a que arrumar a mala,
A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas tamb�m, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo � deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa � que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os C�sares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la;
Hei-de v�-la levar de aqui,
Hei-de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo � deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.












Álvaro de Campos

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